A ESCUTA DO PSICANALISTA NA CLÍNICA DO AUTISMO

21/10/2019

Por Bianca Freitas e Jane Gorne

(Bianca Freitas é graduada em Psicologia na UERJ. Especialista à nível de Residência em Saúde Mental (Imas Juliano Moreira e UFRJ). Formação Contínua em Psicanálise na Escola Letra Freudiana. Saiba mais em: www.akademia.fabricatekoa.com)

(Jane Bravo Gorne é Pedagoga (1989) com habilitação em Educação infantil e Magistério de 2º grau; pós graduada em Psicopedagogia Institucional pela Universidade Estácio de Sá. Cursou a especialização “A teoria e a prática da Psicopedagogia Clínica” no Tekoa. Possui formação em Psicopedagogia pela Escudela Psicopedagógica de Buenos Aires (diretora – Alicia Fernandez). Formação Contínua em Psicanálise na Escola Letra Freudiana. Saiba mais em: www.akademia.fabricatekoa.com)

Partindo do tratamento clínico com crianças autistas, tomadas uma a uma, e articulando com a teoria psicanalítica, este artigo pretende situar a direção da cura no autismo, percorrendo alguns tempos lógicos necessários para a constituição do sujeito. A Psicanálise indica que há no autismo um sujeito inconstituído. E que, cabe ao analista, com sua aposta e sua escuta, tomar cada gesto, cada som, cada movimento da criança, como a produção singular de um sujeito a se constituir. Numa clínica dos detalhes com cada autista em trabalho, a posição do analista, o seu desejo e o seu saber-fazer constroem-se de forma particular e inventiva.

P., um menino com pouco mais de dois anos de idade, chega para sua primeira sessão de psicanálise. Entra no consultório da analista, não a olha nem se dirige a ela. Não fala nenhuma palavra. Anda o tempo todo pelo consultório, pegando e largando os objetos que encontra em seu percurso. Em determinado momento, grita, joga o corpo sobre o divã, bate na barriga e balança os braços repetidamente. Muitos momentos de silêncio total, um silêncio estranhamente ensurdecedor.

Na “Conferência em Genebra sobre o sintoma”, encontramos indicações fundamentais para a direção do trabalho clínico com os autistas. Lacan diz: “Eles não conseguem escutar o que o Sr. tem para dizer-lhes enquanto o Sr. se ocupa deles.” E, sobre a dificuldade do analista na escuta do autista, acrescenta: “É muito precisamente o que faz que não os escutemos. O fato de que eles não nos escutam. Mas finalmente há sem dúvida algo para dizer-lhes.” Concluindo, afirma:

Trata-se de saber por que há algo no autista ou no chamado esquizofrênico que se congela, poderíamos dizer. Mas […] não [se] pode dizer que não fala. Que […] [se] tenha dificuldade para escutá-lo, para dar seu alcance ao que dizem, não impede que se trate, finalmente, de personagens de preferência verbosos.

Sustentadas pela premissa ética da psicanálise, de aposta no sujeito a advir, partimos do encontro com a clínica do autismo para produzir este trabalho. As indicações de Lacan de pensar o analista nesta clínica nos trazem as seguintes questões: o que Lacan está apontando com relação à posição de um analista na escuta de um autista? O que um analista deve fazer operar com o que escuta? Enfim, na direção da cura, qual o trabalho do analista diante do que escuta de um autista?
Em 1943, Leo Kanner, médico austríaco, publicou um artigo denominado “Os distúrbios autísticos do contato afetivo”, onde apresentou pela primeira vez, a partir do estudo e da observação de onze crianças, uma síndrome que ele nomeou de ‘Autismo Infantil Precoce’. Neste artigo, Kanner diz:

Existe, inicialmente, um ‘fechamento autístico extremo’ que, sempre que possível, faz com que a criança negligencie, ignore ou recuse tudo o que lhe vem do exterior. Um contato físico direto, um movimento ou um ruído que ameaçam interromper este isolamento são tratados ‘como se não existissem’; se isto não for mais suficiente, são, então, sentidos como intrusões profundamente perturbadoras.

Ele observa nessas crianças, além da extrema solidão autística, a presença de movimentos ritualizados, repetitivos e estereotipados. Ele diz: “Há nelas uma necessidade poderosa de não serem perturbadas.” E, com relação à linguagem, Kanner observou que algumas crianças não falavam e outras “adquiriram a ‘capacidade de falar’ na idade normal ou com um certo atraso”. Mas, nesses casos, o uso da linguagem não tinha função de comunicação.
Retornamos a Kanner e à psiquiatria clássica apenas para apresentar a origem do autismo e não para catalogar essas crianças e padronizar seus tratamentos. Na contramão disso, o que se propõe aqui é a aposta no particular. As características que se apresentam em comum nas crianças autistas precisam ser escutadas, singularmente, a cada caso. Trata-se, portanto, de tomar cada criança em sofrimento, uma a uma. Saímos então do geral e comum a todos, que Kanner apresenta na descrição da síndrome, para tratar do particular, da forma como essas dificuldades se apresentam em cada autista. Entramos, portanto, no campo da clínica do particular, da escuta do singular, da aposta na emergência do sujeito, ou seja, no campo da psicanálise.
De acordo com Lacan, o sujeito é estruturado pela linguagem, constituindo-se como efeito dela. No texto “Posição do inconsciente”, ele diz:

O efeito da linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por esse efeito, ele não é causa dele mesmo, mas traz em si o germe da causa que o cinde. Pois sua causa é o significante sem o qual não haveria nenhum sujeito no real. Mas esse sujeito é o que o significante representa, e este não pode representar nada senão para um outro significante: ao que se reduz, por conseguinte, o sujeito que escuta.

Seguindo este princípio, a condição para nos tornarmos sujeitos é estarmos submetidos à linguagem. Não se trata de algo dado, natural, ou de um simples processo biológico e orgânico. Precisamos da linguagem.
Recorrendo novamente à “Conferência em Genebra sobre o sintoma”, Lacan diz: “O ser que chamei humano é essencialmente um ser falante”. Em seguida, diz que “ouvir forma parte da palavra. […] que a ressonância da palavra é algo constitucional”. Ratifica, assim, o que havia dito antes sobre os humanos terem “desde o início uma espécie de sensibilidade. […] uma peneira que se atravessa, através da qual a água da linguagem chega a deixar algo para trás, alguns detritos com os quais brincará, com os quais necessariamente ela terá que desembaraçar-se”. Dessa forma, cada criança ao nascer está, desde sempre, inserida num discurso sobre ela. Recebe significantes vindos desse campo que a antecede, campo da linguagem ou campo do Outro. Será a partir daí, desse lugar no campo do Outro, que ela deverá se constituir como sujeito.
Na Revista da Escola Letra Freudiana, O Autismo, onde recolhemos referências fundamentais, Benita Losada, ao trabalhar o tempo do estádio do espelho na constituição do sujeito, assinala o “percurso lógico do sujeito na busca da palavra que vem do campo do Outro, de uma inscrição, da marca do simbólico”. Assim, para que o sujeito advenha, este caminho precisa se dar numa via ativa de mão dupla. Do lado do sujeito, uma busca pela palavra; do lado do Outro, uma oferta da palavra. Um não se dá sem o outro.

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